Humanos não têm 9 vidas



Já vivi muito, e antes de encontrar Rapaz, minha vida era pacata e sem rumo. O encontrei em frente a uma padaria, adorava ir lá no fim de tarde. Nesse horário as pessoas eram gentis - pela manhã era gente apressada, de mau humor e que passa sem olhar, um descaso total. Além da simpatia, o cheiro do pão quentinho era um dos principais motivos. Quando nos vimos, houve uma ligação. Nossos olhos se encontraram e era como se nos conhecêssemos a vida inteira. Todas as nove. Eu estava olhando para a minha versão humana, e ele, para sua versão felina.

A troca de olhares durou poucos segundos e ele saiu com a sua sacola cheirosa. Também segui a minha vida; tinha marcado de caçar com uma galera no terreno abandonado da rua de trás. Meu tipo de compromisso favorito. A caça não foi muito produtiva, alguns dias são mais difíceis do que outros, mas faz parte.

No dia seguinte, depois de uma boa soneca, fui pra porta da padaria. Quinta-feira passada a dona Sua Mãe saiu com uma criança dela prometendo a ela que não ia trazê-la mais pra lá. “Se eu disser não, é não. Me respeite, eu sou Sua Mãe”, ela disse. Bom, seja lá quem for, deve ser uma pessoa bem importante. A melhor novela é a da vida real, e eu estava curioso para saber se ela ia cumprir com o prometido. Mas, na verdade, quem apareceu primeiro foi Rapaz. Ele olhou para mim rapidamente e entrou na padaria. Que cara estranho, estaria ele me seguindo? É uma possibilidade.

De repente senti um cheiro delicioso, que eu não sentia há meses, mas era inconfundível: sachê de salmão. Comecei a procurar loucamente de onde ele vinha. Era de cima, não, mais pro lado, tá chegando perto... Então vi Rapaz vindo até mim com um pacote suspeito. Era o sachê. Não sou um gato difícil. Fui conquistado e quando vi, já estava na cama dele. Os dias foram passando e eu fui ficando. Comida, um lugar confortável e seguro pra dormir todo dia, o que eu preciso mais?

No início, eu gostava de dormir debaixo da cama, um lugar escuro, aconchegante e sem ninguém para me aperrear. Na verdade, não era tão perfeito assim, porque quando o Seu Rapaz se mexia muito, eu sentia tudo. Nem dormindo esse humano ficava quieto. Como sou muito misericordioso, decidi ficar ao lado dele. O que posso fazer? Tenho um coração altruísta. Então, quando eu o sentia remexer muito, eu saia do meu cantinho e subia na cama. Talvez ele tivesse medo do escuro ou de dormir sozinho, porque até enquanto ele dormia, o seu coração batia muito rápido.

            - Já tá bom de eu te dar um nome, né, gato? – Rapaz falou um dia enquanto almoçávamos. Ele na mesa, de frente para o balcão, onde eu estava com meu prato de metal brilhante e o melhor patê de salmão da padaria.

Não. Não invente essa agora, só tem um gato na sua vida, por que você precisa de um nome? Esses nomes só costumam servir para nos humilhar, Lili, Popó, Juju, quem eles pensam que somos?

            - Inácio.

Poderia ser pior. Aceitei.

Durante o tempo que vivi com Rapaz, nunca vi outro humano dentro de casa, ele parecia ser bem reservado, sem amigos, até parecendo um gato, gosto disso. Se eu não viesse da rua, poderia até pensar que não existem outros humanos no mundo.

Mas ele tinha a mim, então não precisava de mais ninguém. Os dias eram calmos: ele trabalhava durante o dia, deixava comida pra mim, claro, e voltava no fim da tarde. Eu adoro ficar sozinho, minha própria companhia é o suficiente, mas até que era agradável quando Rapaz estava em casa. A gente brincava, quando eu estava a fim, ele fazia carinho em mim, quando eu deixava. Às vezes ele vinha com umas ideias malucas, querendo colocar coleira em mim, sou cachorro por acaso? E quando ele ficava conversando comigo em frente ao espelho? Eu tentava relevar porque ser humano é uma raça inferior, temos que ser misericordiosos.

Quando não era Rapaz no meu pé, era Antônia o tempo todo atrapalhando a minha contemplação. Não falei da Antônia aqui, vou explicar. Em frente à cama do humano, tinha uma grande janela com um espaço perfeito para todo o meu corpinho. Ele costumava colocar umas plantas feias (porém deliciosas) ali. Conforme eu fui comendo, acho que ele percebeu que aquele lugar foi feito para mim. Passava boa parte do dia ali, contemplando o mundo de camarote, olhando a vizinhança... Rapaz tinha o seu celular e eu tinha minha janela, acho até mais interessante.

O que eu estava falando? Ah, a Antônia... a cadela emocionada que morava na janela da frente. Às vezes, eu me estressava e saía da minha janelinha para ela se aquietar. Senão era o dia todo latindo, chorando, pulando, canso só de imaginar.

Depois de um tempo eu acabei de rendendo à coleira que Rapaz queria colocar em mim, porque descobri que, se eu usasse aquele acessório humilhante e desconfortável, ele me levaria para dar uma volta lá fora. Me perguntava se ele realmente não tinha nada melhor para fazer ou simplesmente amava me servir e fazia isso por vontade própria? Não gosto de impor nada, mas os humanos se entregam a nós facilmente. Nem fazemos questão de dominar o mundo, mas eles continuam a nos dar essas ideias, estão entregando em nossas patas. Qualquer dia desses eu fundo uma organização para colocar as ideias em ação.

Nós íamos passear a cada 5 dias, quando Rapaz não precisava ir trabalhar. Ele gostava de parar pra comer, mas eu odiava porque ele nunca dividia comigo. Era uma comida cheirosa, eu reconheço o cheiro de fritura de longe. Custava dividir comigo?

Quando estávamos em casa, ele gostava de me provocar com uns brinquedos maquiavélicos que ele chamava de “laser” e “bolinha de papel alumínio”. O barulhinho da bola de papel alumínio sempre me lembrava das cápsulas que Rapaz tomava toda noite após o jantar. Quando eu notava que ele não havia tomado, eu fazia o favor de o lembrar, indo até o banheiro e sacudindo o porta-cápsula no chão. De nada. Voltando aos brinquedos, na minha primeira semana em casa, ele até tentou me dar um “rato” que andava sozinho e parecia absurdamente falso. “Ele pensa que eu sou tolo, só pode.” Eu pensava. O laser e bolinha maquiavélicos eram muito melhores e menos humilhantes. No fim das contas, era bom morar com o humano, cada um tinha o seu espaço, a gente se entendia.

Uma noite, quem abriu a porta não foi o Rapaz, mas a mulher que ficava na casa da Antônia. Foi a primeira vez que vi uma pessoa diferente dentro de casa. Ela colocou água e comida pra mim, saiu e pouco tempo depois, pude ouvir os latidos de euforia da minha vizinha. Nessa noite eu dormi sozinho. Eu costumava gostar disso, mas dessa vez não consegui dormir direito. Isso se repetiu mais duas vezes. Estranho, será que humanos não eram bons com caminhos e se perdiam?

Quando Rapaz voltou pra casa, ele aparentava estar meio molenga, o que fizeram com esse homem? Será que dois dias na rua deixam os humanos fracos a esse ponto? Eu precisava dar umas dicas a ele. Alguns dias se passaram e Rapaz tirou minha coleira do armário! Ele me disse que íamos até a padaria, comprar mais sachês de salmão e pão. No caminho, Rapaz parou em um lugar estranho, parecia uma padaria, mas era toda branca e cheia de caixas, ao invés do cheiro gostoso de pão quentinho, tinha cheiro de limpeza, de álcool. Saímos de lá com uma sacolinha cheia, poderia ser cheia de sachê. Chegando na padaria, eu não acreditei no que vi. E nem era promoção de sachê. A dona Sua Mãe estava lá com a sua criança! Pensei que não as veria mais, já que a dona prometeu não voltar com a criança chorona. Antes, eu diria que os humanos não mantêm sua palavra, são fracos e sempre voltam atrás, mas o Rapaz não era assim.

Certo dia, meu pote de ração estava vazio, já estava vendo o fundo dele e isso é inadmissível. O sol tinha nascido há pouco tempo, então fui para cima do Rapaz, estava na hora de acordar para me servir. Ele tem um sono pesado, mas nesse dia estava impossível. Desisti de tentar e fui pra janela, dali eu via a humana da Antônia fazendo sua refeição matinal e pensei: “Também queria estar comendo, mas meu humano é um preguiçoso”. Hoje vejo como fui maldoso.

Rapaz nunca acordou.

Na verdade, ele sequer se apresentou para mim. Talvez seu nome não fosse Rapaz, mas decidi chamar assim porque combinava. Depois de dois dias me vendo pela janela e a Antônia agoniada o tempo todo, sua humana foi até a porta do apartamento e eu tentei explicar o que estava acontecendo com miados e arranhões na porta. Humanos burros, não conseguem entender. Algumas horas depois, ela e outros humanos abriram a porta e a partir daí foi uma confusão só. Antônia me recebeu na casa dela, que cadela simpática, não gostei.

Foram três longos dias tendo que aturar a euforia da Antônia, até que me mandaram para um casarão, onde estou agora. Sinto falta do Rapaz, da nossa casa pequena, mas calma. Alguns dias mais do que outros. Eu descobri que os humanos não têm nove vidas da pior maneira. Mas também descobri que pode valer a pena dar uma chance a eles. Não são tão ruins quanto eu pensava.

Aqui ninguém sabe meu nome, o que Rapaz me deu e que vou considerar o meu verdadeiro nome pelo o resto das minhas vidas. Quando cheguei, recebi um vergonhoso, que me recuso citar. Minha nova casa tem muita gente - ficar aqui é um sacrifício que faço em troca de comida servida, e também porque não sei o caminho de volta para a padaria. Um humano é o meu limite, passou disso já fico estressado, e aqui, tenho que lidar com quatro. Já pensou?

Como se não bastasse, não sou o único gato da área. Mas não tem só coisa ruim, há muitas coisas boas por aqui, apesar de ser bem diferente da casa do Rapaz. Meus novos humanos são bem de vida, eles até têm uma piscina – que eu passo longe. Para compensar a superlotação de humanos, tenho bastante espaço pra fugir de qualquer interação, então tá ótimo.

Essa não é uma história triste, decidi contar para me lembrar do Rapaz, ou seja lá qual fosse o seu nome. Gosto de contar nossas aventuras caseiras para a galera selvagem daqui.

            - Enzo, psipsipsipsi, Zuzú, olha o petisco! - Ah não, sério? Ninguém precisava saber dessa palhaçada - ou presepada, como Rapaz gostava de chamar.

Comentários

  1. Estou aos prantos 😭😭😭😭

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  2. Mt bom!! Até queria ser o rapaz, mas q n tivesse esse sono tão longo.

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